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em Garrafas
Pratos que se servem no copo, relações que se lacram a branco ou a tinto
Para Ljubomir Stanisic, os vinhos são como família. Presentes nos bons e maus momentos, nas boas e nas más refeições, e sempre presentes em cada prato que cria, em qualquer um dos seus restaurantes.
A relação do cozinheiro com os vinhos começou em 2000, três anos após ter chegado a Portugal, vindo de um país então sem grande tradição vínica. Foi amor à primeira. Primeiro bebeu (muito), depois aprendeu a prová-los, a cheirá-los, a caracterizá-los, a conhecê-los “intimamente”. Até se comprometer para sempre. Na pobreza e na riqueza, na saúde e na doença, na tristeza e na felicidade…
Quando abriu o primeiro restaurante, o 100 Maneiras em Cascais, abriu-se também a um novo desafio: pensar a comida a partir dos vinhos – e não o contrário. Quinze anos depois, esse continua a ser um dos seus “jogos” preferidos. No Bistro 100 Maneiras tiveram lugar eventos vínicos que se tornaram quase históricos, como os jantares criados em volta das criações dos Douro Boys e da Barbeito, da Madeira.
Ljubo começou a brincar à volta das barricas em 2008 e como se brinca melhor acompanhado, decidiu juntar um dos melhores amigos à brincadeira.
Nuno Faria, seu sócio e um dos seus melhores amigos, especialista em vinhos e responsável pela área líquida dos restaurantes, tornou-se companheiro inseparável nas provas, testes, misturas e discussões. Porque, se dois narizes cheiram melhor que um, duas cabeças etilizadas divertem-se muito mais!
As bebidas de assinatura 100 Maneiras foram mais uma (boa) desculpa para mais umas (quantas) viagens pelo país. Alentejo, Douro, Lisboa, Açores, Serra da Estrela e Minho são pontos no mapa vitivinícola e “espiritual” de Ljubo (e do 100 Maneiras). Mas a criação de vinhos de marca própria foi também mais um pretexto para fazer o de sempre: pôr a família e os amigos a trabalhar. Porque a criatividade no 100 Maneiras nunca vem só. E, aqui, nunca se sabe bem quem criou primeiro…
Os meus vinhos são a minha cara chapada: têm estrutura, nunca serão indiferentes a ninguém. Ou se gosta ou não se gosta. São vinhos para comer, para acompanhar com comida e aguentam-se com o tipo de cozinha que eu pratico.
Explica o cozinheiro nascido em Sarajevo
Todas as garrafas com assinatura chef Ljubomir/ 100 Maneiras têm amigos por dentro e por fora. Os rótulos são assinados por Mário Belém e Vasco Branco, autores de muitas das peças do Bistro, como “Arrebenta Coração” logo à entrada do restaurante no Largo da Trindade; e quem, normalmente, lhes dá os nomes e conta as histórias de dentro é Mónica Franco (jornalista e mulher do chefe-patrón).
Mas os amigos estão, antes de mais, no interior das garrafas. António Maçanita , Dirk Niepoort, Francisco Bento dos Santos, Susana Estebán, Rui Reguinga, Pedro Silva Reis e Tony Smith são nomes de reconhecidos produtores e enólogos, mas não foram escolhidos apenas pela sua capacidade técnica… (É o que se chama juntar o útil ao agradável, os amigos ao trabalho, a diversão à profissão – a marca de água de Ljubo – e dos 100 Maneiras).
Esta “trip” pelo vinho começou a sul. No Alentejo. Primeiro na Serra D’Ossa, com a enóloga Susana Estebán e o Solar dos Lobos. O objectivo era fazer um vinho em conjunto. Produziram cinco: Solar dos Lobos edição 100 Maneiras, Lhubav branco e tinto e Lobo Mau branco e tinto(que, por razões burocráticas, se passou a chamar Solar dos Lobos by Ljubomir).
“Ljubav” significa amor, em servo-croata. Lhubav (com «Lh») é como se lê o nome do primeiro vinho criado pelo chefe jugoslavo mais português de sempre. Nas suas veias corre uma mistura de vinho e sangue lusitanos. E, por isso, criou este «Amor» por Portugal e colocou-o em duas garrafas. Numa, um alentejano com sotaque do Norte, branco, frutado, delicado. Tão delicado quanto o amor verdadeiro. Noutra, um tinto honesto, para todas as ocasiões e acompanhamentos.
No “Lobo Mau” branco e tinto (o Solar dos Lobos by Ljubomir), Ljubo colocou o seu apetite voraz. É um cordeiro em pele de lobo: encorpado sem ser agressivo, complexo sendo simples. Composto apenas por três castas e com estágio de um ano em barricas de carvalho francês, é um Reserva que acompanha as suas criações gastronómicas. Tem corpo, estrutura, personalidade própria – como a cozinha praticada nos restaurantes 100 Maneiras.
Na mesma região, mas junto a Arraiolos, na adega Fita Preta, Ljubo voltou à infância e criou o “Lhubinho”, um branco rico e guloso (houve quem afirmasse ser o melhor branco daquele ano e muitos o compraram às caixas no Bistro 100 Maneiras…). Na mesma adega, Ljubo fez também peito cheio e assinou um “Lhubão” (tinto), grande, gordo, encorpado, corpulento. Puro e duro. Ljubo (como é tratado pelos amigos) tornou-se aqui Lhubão para todos. Um grande lobo, um grande Ljubo, um vinho grande.
Na Serra de S. Mamede, junto a Portalegre, o cozinheiro juntou-se a Rui Reguinga e puseram-se a “Nu” para “cozinhar” um branco “sem merdas”. É um vinho sem maquilhagem, sem fermentos, totalmente natural, feito nas vinhas velhas do enólogo.
Um dia, o jugoslavo subiu ao Douro. E já não quis subir mais… Começou por compor com Dirk Nierpoort um “Maldito” branco e tinto e um “Éclaire” branco e tinto. Vinhos de picardia. Em Dirk, considerado um dos melhores produtores de vinho da Europa e uma referência mundial, Ljubo encontrou “outro louco”. Tornaram-se amigos, mais do que parceiros de negócios.
O “Maldito” é um vinho versátil e gastronómico. Profundidade, mineralidade e complexidade são os substantivos que o caracterizam, próprios também dos vinhos desta região. No entanto, a frescura e a pureza da fruta prevalecem. Já o “Maldito” branco é fresco, leve, aromático e com forte mineralidade. O “Éclaire“ tinto, resultado de uma mistura de castas, entre as quais Tinta Amarela, Rufete e Touriga Franca, é produzido na sub-região Cima Corgo, em vinhas a 450 metros de altitude e expostas a Norte, facilitando uma maturação lenta e equilibrada. Já o “Éclaire” branco provém de vinhas com mais de 60 anos situadas na margem direita do rio Douro, a 600 metros de altitude. Com exposição a norte, produzem uvas com um equilíbrio e uma frescura únicos. A fermentação em barrica origina um branco complexo.
Rótulos ilustrados por Mário Belém
Os vinhos 100 Maneiras são um reflexo da história de Ljubomir, das suas ânsias e desejos, resultado de sonhos e vontades, de objectivos concretizados e por concretizar
Das faíscas entre o descendente holandês e o dissidente jugoslavo saiu em 2018 mais um vinho (feito ainda em 2013), um néctar especial, guardado em barricas há mais de três anos, sempre “quase” pronto – mas nunca pronto – a engarrafar. Este tinto muito pouco apressado chama-se “Mó”, em homenagem a uma figura feminina. E por baixo deste moinho prevê-se circular pouca água (mas muita uva…).
“Mais Vale Tarde do que Nunca” foi o primeiro Colheita Tardia com assinatura 100 Maneiras. Nascido de uma parceria com a Real Companhia Velha, é um branco doce, saboroso e longo – resultado da acção do fungo da Botrytis Cinerea sobre as uvas Semillon. Resultado de um fenómeno natural, vulgarmente chamado de “podridão nobre”, é prova de que a natureza pode tudo – até apodrecer! O rótulo, desenhado por Mário Belém, foi destacado pelo jornal Observador num artigo sobre “rótulos de vinho que são verdadeiras obras de arte”.
Rótulos ilustrados por Mário Belém
A arte de “Boca do Inferno” é da autoria de Vasco Branco que, com o imaginário de Dante, “pintou” a primeira aguardente vínica da casa. Criada com a Quinta de Covela, é uma aguardente bagaceira de vinho verde, complexa, intensa e expressiva, tal como o nome e a ilustração. Com eles, pretendeu-se misturar o imaginário de Gustave Doré nas ilustrações do Inferno de Dante ao “nosso” Adamastor e à história do “monstrengo” do Oceano, que transmite essa ideia de força e poder (da aguardente bagaceira) mas que também nos remete para a história de Portugal e para o capítulo dos Descobrimentos. Porque também é à descoberta que o 100 Maneiras se lança, constantemente, a cada nova criação.
Em Lisboa, Ljubo deixou-se ficar KO?… Com a Quinta do Monte d’Oiro, lançou “Quem Syrah?”, exclusivamente com a casta Syrah, e “KO?”, numa brincadeira linguística e metafórica. KO? é a outra face de Quem Syrah?. A face branca, mais límpida, perceptível, mas também marcada pela vida. Knock Out? Não, nunca! “KO?” em servo-croata significa “Quem?”. E afinal quem é Ljubomir Stanisic? Um homem fugido da guerra, refugiado na paz, com muitas histórias contadas e outras tantas escondidas. Nesta sua mistura, 70% Marsanne e 30% Viognier, as histórias são para quem consiga ler com o palato. Vinho com visão raio X.
Rótulos ilustrados por Vasco Branco
Fora de Continente, o apresentador mediático do recordista “Pesadelo na Cozinha” deu umas quantas dores de cabeça a um amigo de longa data e não descansou enquanto não o encurralou… Na ilha do Pico, Ljubo “invadiu” a adega da Azores Wine Company e saiu de lá com um “Encurralado”, um branco com Arinto dos Açores e Verdelho, 20% de vinha centenária – cujo segundo lote, de 2019, venceu o Selo “Altamente Recomendado 2021” da Revista de Vinhos. Uma homenagem às ilhas e aos migrantes, às maravilhas da natureza mas também aos revezes da vida, ao passado com olhos postos no futuro. Tudo “escrito” dentro de uma garrafa, a ser lido por entre as pingas do vinho…
Mas Ljubo é um homem – e um cozinheiro – eclético. E as suas criações, sólidas ou líquidas, revelam isso mesmo. Em 2015, começou a fazer outras descobertas, noutros solos que não as vinhas… Nesse ano, lançou a sua primeira cerveja artesanal: a “Lhubobeer”. Uma ideia entretida durante muito tempo, que o chefe deixou germinar até encontrar o parceiro ideal – a Mean Sardine, cervejeira de Mafra, onde as cervejas artesanais são 100% malte, não filtradas, sem corantes nem conservantes, e o gás é produzido naturalmente em garrafa. À fórmula, Ljubomir adicionou uma das suas ervas de eleição, o tomilho, produzindo uma cerveja suave e aromática.
Rótulos Mó por Vasco Branco, Refugees por Mário Belém e Bicho do Mato por Hélio Falcão
À primeira (cerveja) seguiu-se a segunda (experiência). Três anos depois, em 2018, o chefe lançou-se de cabeça na “Bicho do Mato”. Uma cerveja feita em parceria com a LETRA, sediada em Vila Verde, e vencedora da Medalha de Prata no CIL (Concours International de Lyon) 2020. Uma cerveja 100% natural mas também 100% especial. Especial de “especiada”, mas também de temperada com a cabeça, o tronco e os membros do enfant terrible da gastronomia portuguesa, que ao abecedário de maltes e lúpulos juntou o seu ras-el-hanout (uma especiaria que é mistura de muitas outras, de origem marroquina). Com rótulo da autoria de Hélio Falcão, é uma cerveja artesanal encorpada, robusta, equilibrada e até inusitada (com aroma cítrico e tropical). É Ljubo levado à Letra – duro de roer, mas fácil de beber.
Ainda em 2018, Ljubo não resistiu ao milagre da multiplicação. Depois do vinho, da cerveja, do late-harvest, da aguardente, decidiu criar o primeiro Rum. Refugees é o nome da mistura assinada por Ljubomir Stanisic, envelhecido durante 2 anos nos armazéns da Licores Serrano, na Serra da Estrela (e vencedor da Medalha de Bronze no IWSC 2019). Feito a partir da cana do açúcar – originária da Síria, na antiga Pérsia –, migrou ao longo do mar Mediterrâneo até ao sul de Espanha, onde é destilada, e chegou finalmente a Portugal onde encontrou refúgio, porto de abrigo. Depois de estagiar em barricas de carvalho francês, por onde antes já tinha passado whisky, ginja portuguesa e vinho do Douro, Refugees Rum nasceu.
Ilustração: “Boca do Inferno” – Vasco Branco; “Mais Vale Tarde que Nunca” e “Encurralado” – Mário Belém
Uma história contada em garrafas: 1454 para sermos exactos, todas numeradas e ilustradas por Mário Belém com imagens que nos remetem para o Médio Oriente. Uma história com uma missão que tocou especialmente o chefe nascido em Sarajevo: apoiar os refugiados, contribuir para a possibilidade de um final mais feliz, sendo que parte do valor das vendas reverteu a favor da JRS – Serviço Jesuíta aos Refugiados –, uma instituição de acolhimento e apoio a refugiados em Portugal.
Em 2020, o “Bicho do Mato” faz segunda aparição. A mesma alma, expressa em vinho, produzido pelo chefe jugoslavo com Dirk Niepoort – who else?. Um “branco dos duros” (e do Douro), distinguido com o Selo “Altamente Recomendado 2020” da Revista de Vinhos, que prova que um bicho nunca vem só. Ljubo e Dirk são animais sociais, mas fogem das normas da sociedade. São bichos de espécie rara, farejam hedonismo. Comungam da irreverência. Valorizam a liberdade. Chamam os bois pelos nomes, as vacas também… Se pudessem, viveriam como eremitas. São bichos do mato mas homens do mundo, com mundo. Com história. Cheios de estórias para contar. Brutos de coração mole. Bichos para estimar. (E agora provar, numa garrafa que, tal como na cerveja com o mesmo nome, viaja acompanhada com rótulo assinado por Hélio Falcão).
E se muitos julgariam a garrafeira completa, Ljubo é sempre capaz de encontrar mais um lugar. Mais uma garrafa com que a brindar. Neste caso, mais um vinho nascido da parceria bem sucedida com Dirk Niepoort, o primeiro da dupla fora do Douro. Em Portalegre, juntaram-se para criar um “sobrenome” sem pronunciação possível. Um tinto de vinhas velhas em gobelet, a que chamaram “Sem Maneiras”, com rótulo ilustrado, novamente, por Hélio Falcão.
Nas garrafas (como na comida e na vida), Ljubo (e o 100 Maneiras) coloca mensagens. Atira-as “ao mar” na esperança de encontrarem o destino sozinhas. Deixa-as falar por si. Sem muitas palavras. Apenas com muito “condimento”.